O Racismo como expressão de uma cultura Inquisitorial

Por Álvaro Barcelos

A deplorável sentença proferida pela juíza da primeira vara criminal de Curitiba demonstra muito mais do que o racismo estrutural incrustado na sociedade brasileira. A mentalidade inquisitorial é fruto de um código de Processo Penal elaborado sobre uma matriz fascista que dialoga de maneira visceral com o Directorium Inquisitorium de Nicolau Eymerich, obra do século XIV, que foi o manual dos Inquisidores.
Ao fixar a pena-base em atendimento ao artigo 59 do Código Penal, a magistrada inicia relatando que a culpabilidade do réu não extrapola aquela da reprovabilidade normal, não podendo ser considerada negativa, ou seja, 1×0 para o réu. Partindo para os antecedentes, sem ter muito o que dizer, se limitou a verificar que se tratava de um primário, perfazendo então um placar de 2×0 pro reo. Em seguida veio o momento crítico e desastroso. Sobre a conduta social dizia que nada se sabia. Bastava parar por ali e consignar mais um gol em favor do réu, mas não. Se contradisse com argumento deplorável e, atuando como acusador, anulou aquilo que daria o placar de 3×0 e encerrou o jogo com placar de 3×2 em favor da acusação.
Ao afirmar que o réu era seguramente integrante de grupo criminoso por se tratar de um homem negro, pareceu ter invocado o malfadado artigo 155 do Código de Processo Penal. Tal dispositivo tem um maldito advérbio que, por estar mal colocado, traz um espaço de discricionariedade para o julgador cometer atrocidades como esta. Diz o aludido artigo, que o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório não podendo fundamentar sua decisão, exclusivamente, nos elementos colhidos na investigação.
Este é apenas um dos exemplos do ranço inquisitório que ainda permeia o diploma processual brasileiro. O artigo 385 é mais um caso escancarado deste comportamento no qual o juiz abandona sua posição de terceiro imparcial para atuar como acusador. Diz o referido dispositivo que o juiz poderá condenar o réu ainda que o Ministério Público tenha pedido a absolvição, além de permitir o reconhecimento de agravantes, embora não tenham sido alegadas.
Nem a reforma de 2008 que alterou o artigo 212 para permitir que as partes perguntem diretamente às testemunhas parece ter modificado a mentalidade de muitos magistrados que insistem em inquiri-las como se parte fosse. Nem as intervenções dos advogados são suficientes para se fazer cumprir a modificação no aludido artigo. Quase sempre a resposta é a mesma: No meu juízo as regras são minhas. Como se cada Vara Criminal tivesse um código de processo penal próprio.
Não basta que uma modificação, como a feita pelo chamado pacote anticrime, diga que o processo penal terá natureza acusatória. É mais do que necessário mudar a cultura inquisitória que povoa a cabeça não somente de magistrados, mas de muitos que trabalham com o direito. Cabe lembrar que o sistema acusatório é próprio de democracias e, não por acaso, floresceu na Grécia, trazendo claramente as bases deste tipo de sistema processual penal que são: a separação entre órgão acusador e julgador e a gestão da prova na mão das partes.
Portanto, enquanto não houver respeito a estes dois primados, não há que se falar em sistema acusatório, muito menos se dizer que o sistema processual brasileiro é misto com uma fase inquisitória pré- processual e outra acusatória processual. Infelizmente o nosso sistema é inquisitorial e, enquanto não houver uma mudança profunda na cultura dos que atuam da esfera penal, o sangue derramado nos porões da inquisição irá manchar ainda muitas sentenças.

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